25/04/2023 às 05h08min - Atualizada em 25/04/2023 às 05h08min

A ameaça do H5N1

193 milhões de frangos, galinhas e outras aves foram sacrificados para tentar contê-lo. Mas esse vírus continuou pipocando pelo mundo. E, agora, parece ter adquirido uma mutação preocupante: a capacidade de se propagar entre mamíferos. Entenda quais são os riscos de uma nova pandemia.

Por Super Interessante
(Natalia Sayuri/Getty Images/Superinteressante)
Texto Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
Design e colagens Natalia Sayuri Lara


CCarral é uma cidadezinha tranquila, de 6.400 habitantes, no norte da Espanha. É cercada por propriedades rurais, que marcam seu calendário: todo ano tem a festa do pão, a festa do queijo, as festas do cavalo e da castanha. Mas, na primeira semana de outubro, uma dessas fazendas pode ter começado um novo capítulo da história humana.

O local, a poucos minutos de carro da cidade, era uma criação de vison, bichinho também conhecido como mink e até hoje abatido, com inegável crueldade, para fazer casacos de pele. Os animais da fazenda começaram a morrer e, em 4 de outubro, o veterinário do local coletou amostras nasais de dois deles.

Mandou para um laboratório do governo espanhol, que testou para a presença de Sars-CoV-2 (ele pode infectar diversos animais além de nós, incluindo os visons). Deu negativo. Mas detectou outra coisa: H5N1, um subtipo do vírus influenza que provoca a Gripe Aviária de Alta Patogenicidade, doença que afeta aves – e, nelas, tem uma taxa de mortalidade de quase 100%.

O incidente com os visons espanhóis não era o primeiro em mamíferos. Houve vários outros, em humanos inclusive (nas últimas duas décadas, 868 pessoas pegaram H5N1 no mundo).

Mas desta vez havia algo diferente. Nos casos anteriores, humanos e outros mamíferos contraíram o vírus após o contato com aves. Agora, aparentemente o H5N1 estava passando diretamente de um vison para outro. Os bichinhos continuaram a morrer até que, em 18 de outubro, as autoridades decidiram sacrificar todos os (52 mil) visons da fazenda. O surto foi contido.

Uma das amostras foi submetida a análise genética, que revelou algo perturbador. O vírus era derivado de uma linhagem chamada 22P015977, que já havia sido detectada em gaivotas na França em 2022. Provavelmente ela foi se espalhando em aves pela Europa até alcançar Carral.

Só que chegou com uma mutação. “Os vírus detectados na fazenda de mink são diferentes de todos os H5N1 já caracterizados nas aves da Europa”, afirmou um estudo publicado por cientistas espanhóis e italianos (1).

As amostras tinham uma alteração no gene da proteína PB2 [veja infográfico abaixo], que pode dar ao vírus uma habilidade terrível: a capacidade de se propagar entre mamíferos. Como sabemos disso? “A mesma mutação está presente no vírus da gripe suína (H1N1), da pandemia de 2009″, explica o estudo.

Talvez você não se lembre, mas o H1N1 assustou o mundo naquela época: foram 491 mil casos confirmados, com 20 mil mortes. E a real quantidade pode ter sido muito maior. Um estudo (2) estimou o número global de infectados em 700 milhões a 1,4 bilhão. Segundo uma projeção da OMS (3), as mortes podem ter chegado a 284 mil. Felizmente, existiam vacinas, e a pandemia de 2009 foi contida.

Já naquela época, alguns cientistas enxergavam o H5N1 como a próxima ameaça. “As manifestações clínicas iniciais são não específicas, o que dificulta o diagnóstico”, afirma um artigo científico sobre esse vírus, publicado em 2009 por cinco pesquisadores da Universidade de Alfenas, em Minas Gerais (4).

Os cientistas decidiram olhar para o H5N1 porque, na primeira década do século 21, ele começou a dar sinais preocupantes. “A partir de 2004 houve relatos, em vários países, de um grande número de aves sendo atingidas pelo vírus. Foi um sinal de alerta para um possível aumento de casos em humanos”, diz a infectologista Gabriela Araujo Costa, uma das autoras do artigo e hoje professora do Centro Universitário de Belo Horizonte. “Havia precedentes de pandemias com o influenza, algumas com grande número de óbitos”, diz.




De fato. A Gripe Espanhola de 1918, que matou 17 a 50 milhões de pessoas (as estimativas são imprecisas), foi causada por outro influenza: uma versão devastadora do H1N1. Ele também foi o responsável, em 1977, pela chamada Gripe Russa, que começou na URSS e se espalhou pelo mundo, matando 700 mil pessoas.

Em todos esses casos (1918, 1977, 2009), o vírus foi mais letal em jovens e adultos do que em idosos – a OMS estima que, na pandemia de 2009, 80% das vítimas fatais tivessem menos de 65 anos. Não se sabe o porquê, mas uma hipótese é a chamada “tempestade de citocinas”:  o vírus causa a ativação excessiva do sistema imunológico, que passa a atacar os tecidos do organismo. Em pessoas jovens, o sistema imune é mais forte – e pode ser mais destrutivo.

O certo é que o influenza não pega só quem é fisicamente mais frágil. Por isso, é considerado especialmente ameaçador. “Em 1997, o mundo chegou perigosamente perto de outra epidemia global”, escreveram os virologistas Robert Webster e Elizabeth Walker, em artigo (5) sobre um surto de H5N1 ocorrido na China naquele ano.

Aves foram sacrificadas, pessoas isoladas, e a doença contida – com apenas seis mortes. Mas poderia ter sido bem diferente. “Se o vírus tivesse obtido a habilidade de se espalhar de pessoa para pessoa, a pandemia poderia ter tirado a vida de 1/3 da população global”, diz o texto.

É essa capacidade que, agora, o H5N1 pode ter adquirido. Nos meses que se seguiram ao surto na fazenda de visons, houve casos em várias espécies de mamífero: focas, raposas, lontras, ursos, toninhas, golfinhos e até gatos, em locais tão díspares quanto a Inglaterra, os EUA e o mar Cáspio.

Em algumas dessas situações, há indícios de que a doença possa ter sido transmitida diretamente entre mamíferos (no mar Cáspio, por exemplo, 700 focas foram encontradas mortas perto de uma ilha).



E o H5N1 segue se propagando entre aves – nos últimos meses, houve casos no Peru, na Venezuela, no Equador, na Colômbia e em Honduras (onde foram encontrados 240 pelicanos mortos por H5N1). “Este surto parece ser completamente novo, e com um desenvolvimento preocupante”, afirma o virologista Thomas Peacock, da Imperial College London. “Não está clara a razão para os atuais ‘transbordamentos’ [do H5N1] para mamíferos”, diz ele, que trabalha com duas hipóteses.

A primeira, menos pessimista, é que haja tanto H5N1 circulando em aves que os mamíferos predadores estejam sendo expostos a ele com mais frequência.

A segunda tese é que o vírus realmente tenha se tornado transmissível entre mamíferos – o que ainda precisa ser confirmado por testes de laboratório. “Os seres humanos não têm imunidade preexistente ao vírus da influenza aviária. Se ele for introduzido na população humana, e houver uma mutação através da qual possa se espalhar entre as pessoas, particularmente por via aérea, ocorrerá uma pandemia”, diz Costa.

Vem aí o fim do mundo, então? Calma. Em alguns dos focos, como no Peru, o vírus não contém a mutação na proteína PB2, que o torna mais contagioso (6).

Além disso, mesmo nos casos em que essa mutação está presente, a transmissão em larga escala pelo ar (sem contato direto com um animal infectado) ainda é considerada difícil: para conseguir fazer isso, o H5N1 precisaria sofrer mais uma alteração, em uma proteína chamada hemaglutina [veja infográfico abaixo].

Acima de tudo, já existem vacinas contra o vírus (mais sobre elas daqui a pouco). O problema é que, se um dia o H5N1 começar uma pandemia, pode ser difícil fabricá-las na velocidade e quantidade necessárias. O motivo é quase uma ironia: a produção dos imunizantes depende das galinhas, cuja população pode ser dizimada pelo vírus. Desde 2020, 193 milhões de aves foram sacrificadas para tentar frear a propagação dele.

O ovo, o vírus e a galinha

Surtos de H5N1 acontecem com alguma frequência. E ele também mata gente, não só bichos. Sabe aquelas 868 pessoas que contraíram o vírus nas duas últimas décadas? Nada menos do que 457 morreram (52,6%).

O Sars-CoV-2 mata em 0,1% a 2% dos casos, dependendo do país. Isso signfica que, mesmo se uma eventual pandemia de H5N1 alcançar muito menos gente que a do coronavírus, poderia causar um número avassalador de mortes.



Mas, ao mesmo tempo, essa taxa de 52,6% provavelmente está superestimada. Nas últimas duas décadas, deve ter havido bem mais casos de H5N1 do que foi reportado – e eles passaram despercebidos, porque não foram graves.

Em 2012, cientistas dos EUA analisaram amostras de sangue de 12 mil pessoas, colhidas em áreas de nove países que haviam registrado surtos desse vírus (7). Descobriram que 1% a 2% daqueles indivíduos possuíam anticorpos contra o H5N1 – portanto, eles haviam sido infectados em algum momento. E nem sabiam disso.

Em 2021, cientistas do governo canadense publicaram um estudo (8) no qual levam em conta esses fatores e tentam calcular a real letalidade do vírus. Resultado: morte em 14% a 33% dos casos. É menos, mas catastrófico também.

Acontece que essa projeção é baseada no modelo atual, com o vírus passando de aves para humanos. Até hoje, a maioria das vítimas de gripe aviária trabalhava em fazendas, com grande quantidade de aves, e provavelmente inalou uma “dose viral” bastante alta. Não é garantido que, caso o H5N1 um dia comece a ser transmitido entre pessoas, isso também vá acontecer...

 
Leia a matéria completa em: super.abril.com.br/saude/a-ameaca-do-h5n1/


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